O que é o conceito de Ciência Aberta? E de que forma pode resolver problemas complexos da sociedade? O Diretor de Área da Unidade FCCN, João Mendes Moreira, responde a estas e outras questões, fazendo um balanço do estado de implementação de políticas, estruturas e boas-práticas. Em entrevista, João Mendes Moreira detalha ainda algumas das principais conquistas resultantes dos esforços realizados tendo na área da Ciência Aberta, destacando os vários projetos e serviços da Unidade FCCN a ela ligados.
O que é a Ciência Aberta e qual a sua importância no contexto atual da investigação científica?
Existem várias definições de ciência aberta. A que habitualmente uso, por ser abrangente e fácil de transmitir, é a seguinte: “a Ciência Aberta é a atividade científica praticada de modo aberto, colaborativo e transparente, em todos os domínios do conhecimento, desde as ciências fundamentais até às ciências sociais e humanidades”.
A importância da Ciência Aberta, no contexto da atual investigação científica, tem vindo a aumentar por várias razões. Por um lado, porque tem o potencial de aumentar a qualidade, o impacto e os benefícios da ciência e de acelerar o avanço do conhecimento, tornando-o mais confiável, mais eficiente e mais preciso. Por outro, porque permite tornar a ciência mais compreensível pela sociedade, permite melhor responder aos desafios societais e encoraja o desenvolvimento da qualidade do processo da avaliação científica.
Quais são algumas aplicações práticas destes princípios? E que impacto direto têm no dia-a-dia dos cientistas?
A prática da ciência aberta implica, não apenas que os resultados da investigação sejam disponibilizados sem restrições de acesso, mas também que o processo de investigação seja ele próprio aberto, usando métodos, ferramentas e workflows que facilitem a partilha, reutilização e colaboração.
No passado, quando as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) eram inexistentes, a investigação era concentrada numa publicação científica. As TIC tornaram possível desconstruir os resultados e os processos de investigação. Hoje em dia é possível publicar, não apenas os resultados da investigação científica como também todos os artefactos que lhe deram origem como, por exemplo, notas laboratoriais, conjuntos de dados ou software usado no processamento de dados.
É igualmente possível fazer esta partilha ao longo do processo de investigação, e não apenas após a investigação estar “concluída”. Esta abordagem torna possível, entre outros benefícios, receber comentários e sugestões ao longo do processo de investigação, permitir a outros investigadores a reprodução da investigação e, não menos importante, reutilizar componentes desenvolvidos por outros, aumentando assim a transparência e eficiência do processo. Costumo dizer, em tom de brincadeira, que a Ciência Aberta é a Ciência LEGO.
Uma prova incontestável dos benefícios da investigação baseada no paradigma da Ciência Aberta foi a utilização deste paradigma para resolver as emergências societais provocadas pela pandemia. Com efeito, nunca na história da humanidade se produziu e partilhou, num espaço de tempo tão curto, tamanho conhecimento sobre um assunto. De referir que também os editores científicos participaram neste esforço disponibilizando, não apenas o acesso aberto a conteúdos sobre este tema, como também implementando mecanismos de fast peer review.
Perante este sucesso, a questão que se coloca é: como se justifica não tornar também a investigação sobre o cancro ou as doenças cardiovasculares livremente acessíveis? Para além do domínio da saúde, a Ciência Aberta e a investigação e inovação responsáveis serão fundamentais para identificar outros desafios societais em áreas como alimentação, agricultura e silvicultura e água; energia segura, limpa e eficiente; transporte inteligente, verde e integrado; ação climática, ambiente e recursos bem como a segurança das sociedades.
O conceito tem vindo a ganhar especial notoriedade ao longo da última década. Sente que existem já conquistas importantes que foram garantidas? Quais?
Considero que foram feitos progressos significativos. Contudo, a notoriedade da ciência aberta não é homogénea, uma vez que depende de vários factores como o estágio de adoção, a dimensão em análise (acesso aberto, dados aberto, software aberto, etc), o domínio científico ou a geografia.
Se considerarmos três estágios possíveis: sensibilização/evangelização, adoção e consolidação, posso afirmar que a ciência aberta, enquanto conceito abrangente, está a terminar a fase de sensibilização e evangelização. Esta afirmação é suportada pela recente adoção da recomendação da UNESCO sobre Ciência Aberta a qual foi subscrita por 193 países.
Ao nível do estágio de implementação, existem dimensões que estão numa fase de consolidação, em particular a dimensão do acesso aberto a publicações científicas enquanto outras, tais como os dados de investigação, se encontram numa fase de implementação. Neste particular, gostaria de referir que a Comissão Europeia passou a exigir, no quadro comunitário de apoio em vigor, a disponibilização dos dados resultantes de investigação financiada. Estes dados deverão respeitar as regras FAIR (Findable, Accessible, interoperable, Reusable).
Existem domínios científicos que se encontram em estádios mais avançados e onde a ciência aberta é já a regra de fazer e comunicar ciência. É o caso, por exemplo, da física ou astronomia.
Um ecossistema de Ciência Aberta prevê a criação de vários mecanismos e estruturas. Que trabalho tem sido realizado pela Unidade FCCN nesse sentido?
A Unidade FCCN está focada em duas das dimensões mais importantes da ciência aberta: as publicações científicas e os dados de investigação. A figura que se segue apresenta as várias atividades que estão a ser desenvolvidas. Para além das dimensões referidas, a Unidade FCCN está a trabalhar na disponibilização de um diretório de revistas e repositórios e mantém, desde 2014, o programa ptcris.pt o qual visa promover a interoperabilidade entre os vários sistemas de gestão de ciência.
No domínio das publicações, a Unidade FCCN desenvolve três atividades: a b-on, o PubIn e o RCAAP.
A b-on foi lançada em 2004 com o objetivo de promover o acesso às principais fontes de informação científica mundiais. Através de acordos transformativos que vigorarão de 2022 a 2024, os autores de instituições b-on poderão publicar em acesso aberto, na maioria dos editores subscritos pela b-on e nas condições contratualizadas com cada um deles, sem qualquer custo.
A iniciativa PubIn visa a disponibilização de infraestruturas e serviços para suportar as revistas científicas nacionais em acesso aberto. Finalmente o RCAAP, acrónimo de Rede de Repositórios Científicos de Acesso Aberto, permite que as instituições de ensino e investigação nacional mantenham um repositório da sua produção científica.
No domínio dos dados de investigação está previsto, para o corrente ano, o lançamento da iniciativa Pólen. que irá disponibilizar serviços para a gestão de planos de dados de investigação bem como um repositório de dados de investigação.
Estas infraestruturas e serviços servirão de suporte ao estabelecimento de políticas de ciência aberta da FCT.
Quais serão os próximos passos mais relevantes da Unidade FCCN no que diz respeito à Ciência Aberta?
De uma forma geral, os próximos passos/desafios passam por mudar as práticas de investigação e de comunicação de ciência. Essa mudança, para ser bem sucedida, tem de considerar as dimensões que estão representadas na pirâmide que se segue.
São necessárias infraestruturas e serviços, os quais devem ser fáceis de usar. A prática da Ciência Aberta deve ser a regra na comunidade de investigação e, para tal, é fundamental que esta prática seja gratificante. A este propósito, gostaria de mencionar que está em curso, a nível global, a reforma do sistema de avaliação, a qual se espera que venha a valorizar as práticas de Ciência Aberta.
Finalmente, as políticas são essenciais para tornar a prática da Ciência Aberta uma realidade. Assim, em 2022, está prevista pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), a atualização da política de acesso aberto a publicações científicas de forma a ficar alinhada com o plano-S, bem como a implementação de uma política de dados de investigação
Um exemplo de instanciação desta pirâmide foi a mudança das práticas de comunicação presencial para virtuais na sequência da pandemia. A comunicação virtual foi possível porque existiam ferramentas para o efeito, eram fáceis de usar, passaram a ser a forma de comunicação, eram gratificantes porque permitiam continuar a trabalhar e a receber salários e obrigatórias porque o governo estabeleceu, durante um período de tempo significativo, confinamentos.
A Unidade FCCN será responsável por apoiar todas e cada uma das camadas desta pirâmide. Na componente das infraestruturas, os próximos passos serão o ajuste / alargamento do portfólio de serviços por forma a suportar as restantes dimensões da Ciência Aberta (ex: open peer review, publicação contínua, repositório de software ou protocolos, etc). Para este fim, o suporte político e orçamental serão fundamentais para fazer avançar a adoção e a prática da ciência aberta em Portugal.